Respeito muito os estagiários. Esta
coluna é uma homenagem a eles e, especialmente, àqueles que trabalha(ra)m em meu
gabinete nestes anos todos. Valorosa classe. Inicio com uma citação:
“Embora a qualidade média das decisões judiciais possa não ter diminuído em
conseqüência da atribuição de redigi-las a estagiários, a variação de qualidade
diminuiu. Os estagiários de direito – que em sua maioria, são indivíduos
recém-formados em direito, com referências acadêmicas extraordinárias, mas sem
experiência em direito ou em qualquer outra profissão – são mais homogêneos que
os juízes. A tendência à uniformidade da produção, também característica das
petições redigidas pelos grandes escritórios de advocacia, encontra equivalência
na evolução em direção à fabricação em massa de produtos...”.
Não se empolguem aqueles críticos que sempre acham que no Brasil tudo é
pior... A citação anterior é uma preocupação externada por um dos corifeus da
análise econômica do direito (AED), Richard Posner – portanto, distante das
minhas predileções teóricas - em relação à “estagiarização” que está ocorrendo
nos Estados Unidos.
1.
Todo o poder aos estagiários.
Os estagiários ainda não assumiram o poder – falo agora de
terrae
brasilis - porque não estão (ainda) bem organizados. Deveriam aderir à CUT.
Em alguns anos, chegariam lá. Dia desses veremos os muros pichados com a frase
“TODO O PODER AOS ESTAGIÁRIOS”. Afinal, eles dão sentenças, fazem acórdãos,
pareceres, elaboram contratos de licitação, revisam processos... Vão ao banco.
Sacam dinheiro. Possuem as senhas. Eles assinam eletronicamente documentos
públicos. Eles decidem. Têm poder. Eu os amo e os temo.
Sim, eu respeito profundamente os estagiários. Eles estão difusos na
República. Por vezes, invisíveis. Jamais saberemos quantos são. E onde estão.
Algum deles pode estar com você no elevador neste momento. Ou em uma audiência
(é bem provável até). Ou no Palácio do(s) Governo(s). Federal, estadual e
municipal. Sei de vários que lá estão. E participam de reunião de gabinetes de
Ministérios. Que bom. Com isso vão aprendendo. Afinal, é para isso que servem os
estagiários.
Eles fazem de tudo. Neste momento, um estagiário, ou vários deles, podem
estar controlando o seu voo. A Infraero tem muitos estagiários. Torço para que
eles sejam tão bons quanto os que estagiam no meu gabinete. Estagiários de todo
mundo: uni-vos. Nada tendes a perder senão vossos manuais recheados de
enunciados
prêt à porter, prêt à parler,
prêt à penser que os professores vos mandam comprar. Estagiários de
toda a nação: indignai-vos face à exploração a que estão submetidos.
1. A tomada do poder.
Parênteses: como seria uma revolta dos estagiários? Imaginemos uma aliança
tipo “operário-camponesa”, quer dizer, uma aliança entre estagiários e os
bacharéis que não passaram no Exame de Ordem. Cercariam os Fóruns e Tribunais.
Juízes, Promotores, advogados e serventuários da justiça (sim, estes, dos quais
muitos maltratam os pobres estagiários nos balcões de todo o Brasil) ficariam
sitiados durante semanas. O armamento das forças aliadas (estagiários e
bacharéis sem carteira) seria simples, mas letal:
enormes catapultas,
com as quais atirariam enormes manuais (aqueles que querem simplificar o direito
e que, por sua causa e baixa densidade científica, os bacharéis não conseguiram
passar no exame de ordem e nem nos concursos)... Conheço alguns desses
compêndios que provocariam enormes estragos nos tetos dos Tribunais. Penso que
nem o teto do STJ resistiria. Que, assim como os demais fóruns, repartições e
tribunais, teriam um problema a mais: não somente o ataque vindo de fora, das
catapultas das forças aliadas, como também de dentro. Explico: provavelmente o
ataque seria lançado durante o expediente. Alguns representantes do MUNESBASC
(Movimento Unido dos Estagiários e Bacharéis sem Carteira) estão fazendo
alianças com os bacharéis – mesmo os com carteira - que não conseguem decifrar
as questões armadilhescas dos concursos públicos (a sigla do movimento, pelo seu
tamanho, é impossível de publicar). Já se fala abertamente em um
putsch.
Eles formam verdadeiramente o Terceiro Estado. Lembrem-se: antes de 1789, já
se ouviam rumores... Diziam coisas, mas ninguém acreditava: lá vinham eles em
direção à Paris...! Hoje, os estagiários são aquele conjunto de pessoas que
formavam o terceiro Estado (camponeses, comerciantes, advogados, enfim, todos os
que não eram nobres ou clérigos...). E as fileiras vão engrossando.
Portanto, meu pedido inicial: estagiários de todo os fóruns, repartições,
palácios e tribunais em geral: quando chegardes ao poder, poupai-me! Sou da
“base aliada dos estagiários”. A diferença é que não fico exigindo, como fazem
os deputados da base aliada do governo, a liberação de emendas parlamentares. Eu
apoio a futura
estagiariocracia sem chantagear! Outro detalhe que me
favorece: eu não peço para a “base aliada” colocar minha mãe no TCU (lembram-se
de um certo governador fazendo campanha para levar mamãe ao Tribunal de Contas
da União? Ele conseguiu!). Quem me contou isso foi um estagiário que viu
tudo...
Eles sabem de tudo. Outra vantagem minha: como sou da base aliada dos
estagiários, não mando a conta da arrumação dos meus dentes para o Senado
(portanto, é a patuléia quem paga), como fez, no ano passado, o agora presidente
da comissão de ética, senador Valadares. E nem uso o que resta das minhas cotas
de passagens aéreas para levar familiares (ou namoradas) para a Disney ou para
Paris. Nem quero o Ministério da Pesca. Eu também não sei pescar, assim como o
ministro Crivella. Só sei escrever. Um pouco.
2.
Depois da revolução. Como seria o nouveau
régime? O adeus ao ancièn régime.
Eu apoio a futura estagiariocracia sem exigir cargos ou favores. Já ofereço,
desde já, a minha biblioteca para o
nouveau régime. Ela pode ser
expropriada. Vamos melhorar o ensino jurídico brasileiro. Tenho uma lista enorme
de livros a indicar. Bons autores. Nenhum deles trará as lições de autores como
Dworkin, Habermas, Gadamer, Rui Barbosa, Pontes de Miranda, Heleno Fragoso,
Alexy, Kelsen, etc,
de “orelha” (aqui, cada leitor pode fazer a sua
lista – não quero polemizar nessas simples referências). Nada de pequenos
resumos. Fora com as vulgatas. Vamos estudar de verdade. No novo regime, o
direito será encarado como um fenômeno complexo. Portanto, não haverá mais
espaço para “literatura piriguete” (quer algo mais fácil que “piriguete”?)
Também na pós-graduação (mestrados e doutorados) não mais serão feitas
dissertações ou teses sobre temas monográficos como “agravo de instrumento”, “o
papel do oficial de justiça”, “reflexões sobre os embargos infringentes”;
“(re)pensando o artigo 25 do Código do Consumidor – uma visão critica”; “um
olhar sistêmico sobre a progressão de regime” ou “execução de pré-executividade:
reflexões à margem”... (permitam-se as licenças poéticas).
Sim, tudo mudará. Os estudantes não mais serão enganados pelo professor que
só sabe dar aula usando
Power Point e fica lendo o que está nesse
“pauerpoint” (observação: se o professor insistir, passará a remeter o material
via email para os alunos, que poderão ficar em casa lendo aquilo que, até então,
ele lia para eles no
pauerpoint...). PS: antes que alguém se atravesse
(ou se irrite), registro: sim, eu valorizo bastante as novas tecnologias... Só
acho que não podem ser um fim em si mesmo. O instrumento não substitui o
saber.
No
nouveau régime, será proibido ao professor ficar lendo o artigo
do código para os alunos e, em seguida, “explicar” – fazendo caras e bocas - o
que “dizem as palavras da lei...”. Será proibido invocar coisas metafísicas como
“a vontade da norma” (como sabemos, “norma” só tem vontade se for uma senhora
que convidamos para jantar). Sugeri isso para a pauta da Estagiariocracia porque
essa discussão me é muito cara. De há muito.
Também não haverá mais a invocação do “espírito do legislador” e não haverá
mais perguntas “inteligentes” como “o que o legislador quis dizer aqui”? (neste
caso, sempre haverá um aluno – espião do regime – que entregará um celular
pré-pago ao professor sugerindo-lhe que ele mesmo, o mestre, ligue para “o
legislador” e pergunte...).
Com o tempo, os alunos, a partir desse novo programa pedagógico, já poderão
entender as anedotas e os sarcasmos que eu conto em minhas palestras... Até as
finas ironias (não só as minhas, é claro) serão compreendidas. Já não agüento
mais contar a estória dos rabinos que estudavam o Talmude, o Livro Sagrado...
Mas, é claro, não contarei aqui. Não mais precisarei explicar que interpretar
não depende de placar ou de maioria... E que quando o Rabino Eliezer disse...
Bem, deixemos assim. Na próxima conferência, que será em Natal (Congresso em
Homenagem ao Min. Gilmar Mendes), prometo que contarei (de novo). Ainda: quando
falo do sujeito solipsista, não será mais preciso estroinar no final, desfazendo
o silêncio com brincadeiras do tipo “o
Selbstsüchtiger (sim, é
esse o nome do sujeito egoísta da modernidade, esse do esquema sujeito-objeto)
não é o volante do Bayern de Munique... O novo regime será muito bom. Já estou
antevendo isso. Alvíssaras.
Mas, tem mais: no
nouveau régime — pelo menos até que ocorra a
restauração (sempre ocorre, pois não) do
ancièn régime e nossas cabeças
sejam cortadas — mudaremos os atuais currículos dos cursos jurídicos. E os
concursos públicos não mais perguntarão sobre a vida e obra de gêmeos xifópagos
e nem sobre a transformação de homens em lagartos (nunca vou esquecer isso). As
questões não mais versarão sobre enfiteuse e nem serão armadilhas (pegadinhas
malandras que só divertem o nécio que a elaborou). Não mais será necessário
decorar a Constituição e os Códigos para fazer concurso; as perguntas, no novo
regime, buscarão detectar efetivamente o que os candidatos sabem; também o Exame
de Ordem não trará mais perguntas que somente o argüidor saiba ou baseadas no
único livro que o argüidor leu ou conhece.
Nessa nova era, as provas de concursos não serão mais feitas para divertir os
arguidores. Não. Nunca mais. E haverá fortes punições. Por exemplo, quem fizer
perguntas do estilo “pegadinhas” ou sobre coisas ridículas (p.e.x., Caio e Tício
que embarcam em uma tábua e depois se matam...), terá que resolver as questões
do mesmo concurso feitas pelos seus colegas de banca. E essa prova será oral...
na presença de todos os concurseiros (como na arena romana). E cabeças
rolarão!
No
nouveau régime, extinguiremos (me coloco no meio porque me
considero, como já disse, da “base aliada dos estagiários”) os embargos
declaratórios e os juízes não mais farão sentenças obscuras, contraditórias ou
omissas. No novo regime, o art. 93, IX será cumprido na íntegra. E não será mais
necessário fazer agravo do agravo; e nem embargos do agravo e embargos do agravo
do agravo. Na nova ordem que será instaurada, o Supremo Tribunal Federal
declarará a inconstitucionalidade dos embargos declaratórios (ou os declarará
não recepcionados, antes que alguém me corrija e diga que, em sendo o art. 535
do CPC anterior a Constituição, não cabe ADI – embora caiba ADPF, pois
não?).
No novo regime, não mais se decidirá conforme o que
cada-um-pensa-sobre-o- mundo-e-o-direito, mas, sim, a partir do que diz
a doutrina e a jurisprudência, com coerência e integridade. O direito terá um
DNA. As denuncias do Ministério Público somente serão deduzidas quando
efetivamente existirem indícios. Não bastará juntar reportagens de revistas, por
exemplo. E serão recebidas de forma amplamente fundamentadas.
Nesse novo tempo, não será mais permitido construir princípios estapafúrdios.
Até que saibamos, de fato, o que é um Princípio, sua “fabricação” estará
suspensa. Proibida! Vamos separar o joio do trigo. Como Medida Provisória n. 1,
já de pronto ficam revogados “princípios” como “da ausência ocasional do
plenário”, “da rotatividade”, “do fato consumado”, “da confiança no juiz da
causa”, “da delação impositiva”, “alteralidade”, da “benignidade”, “do deduzido
e do dedutível”, “da afetividade” e “da felicidade” (embora todos queiramos ser
felizes!).... Estão fora
ab ovo. Ficará também vedado o uso da
ponderação de valores, a não ser que haja a comprovação de que o utente tenha
construído a regra adstrita... Portanto, nada de pegar um princípio em cada mão
e recitar o mantra da “ponderação”.
No
nouveau régime que se instalará, o sistema acusatório prevalecerá
no processo penal. Inclusive o art. 212 do CPP será cumprido. O STJ e o STF
anularão todos os processos em que não for obedecido o novo modo de inquirição
das testemunhas. O descumprimento do art. 212 não será mais “nulidade relativa”;
será, sim, nulidade absoluta. Finalmente, a nova lei será cumprida e os
advogados e promotores deverão eles mesmos produzir as provas. O juiz inquisidor
terá seus dias contados.
Já no processo civil, não mais se falará em “escopos processuais”.
Finalmente, o instrumentalismo será sepultado. As cinzas de
Oskar von
Büllow serão jogadas na costa brasileira e sua alma, juntamente com as
de
Liebmann (e outros...), descansarão em paz. Tudo graças ao
nouveau regime.
Também o direito administrativo será levado a sério. Será vedada a sua
“descomplicação” (é um sarcasmo!). Você não será mais multado por qualquer
guarda de trânsito sem a possibilidade de defesa. Não mais bastará a palavra
dele. Ele não terá mais “fé pública”. A Constituição triunfará. Todos dirão:
viva, o direito administrativo não é mais só para fazer grandes congressos... Ou
para fazer dissertações de mestrado. Agora vai valer mesmo. Inclusive os
recursos que o advogado interpuser contra as multas serão lidos na íntegra pelas
juntas. As juntas, quando negarem os recursos, fundamentarão as decisões. E já
não se falará de outra coisa...
No direito penal, os tipos penais de perigo abstrato sofrerão uma forte
censura (filtragem) hermenêutico-constitucional. Cada caso concreto será
examinado à luz da presunção da inocência e, se necessário, será aplicada a
técnica da
Teilnichtigerklärung ohne Normtextreduzierung. É verdade.
Finalmente, implementaremos o controle difuso para valer e este não mais servirá
apenas para ornamentar dissertações e teses.
Nos crimes de furto, o sistema fará uma escolha: ou aplicará o critério da
insignificância dos crimes de descaminho também para o furto ou os crimes de
contrabando ou descaminho também serão avaliados de acordo com as balizadoras do
furto. A isonomia será para valer. Inclusive na comparação entre a devolução do
valor furtado com o pagamento dos tributos nos casos de sonegação.
Fairness (equaninimidade), essa será a palavra mais usada. Isonomia.
Igualdade. Estes serão os critérios norteadores dos tribunais.
Também o art. 557 do CPC será usado com mais parcimônia pelos tribunais. O
nouveau régime dará cursos para evitar tantas decisões monocráticas...
O CNJ baixará recomendação para que sejam revitalizados os juízos colegiados.
Também os advogados, ao fazerem sustentações orais, serão ouvidos. Ninguém
ficará mexendo nos computadores enquanto o causídico se esfalfela na Tribuna.
Todos prestarão atenção.
No
nouveau régime, uma portaria não valerá mais do que a
Constituição. Nunca mais. O Ministro da Fazenda não legislará mais por
resoluções. Nwem o da Previdência. A Comissão de Constituição e Justiça do
Congresso examinará os projetos previamente. As ONG’s serão fiscalizadas. Muitos
dos atuais dirigentes terão que trabalhar de verdade. Os atores da Globo não
mais usarão os benefícios da Lei Rouanet. Oas Estádios da Copa não serão
superfaturados. A fiscalização será implacável. E o crime de Fraude à Licitação
não será mais punido com “cesta básica”.
No
nouveau régime os advogados não mais serão maltratados e/ou
humilhados. Eles não precisão mais implorar para serem recebidos pelos juízes. E
receberão cafezinho na antessala do magistrado. Aliás, isso estará no novo
Estatuto que o
nouveau régime implantará. E, o que é melhor, o Estatuto
dos Advogados será cumprido. Ah, no novo regime...!
Pronto. Eis as bases do
putsch. Mas não quero ser o Robespierre
desse regime. Pela simples razão de que este perdeu a cabeça. Falando mais sério
ainda: um pouco de utopia vai bem. Nestes tempos de
atopia e
acronia, mirar um lugar inalcançável pode fazer bem ao nosso espírito.
Um pouco de desconstrução do sistema pode levar a boas reconstruções. Como diz
meu poeta favorito, Manoel de Barros,
sempre compreendo o que faço depois
que já fiz! Só esta frase já daria para fazer uma tese. Pura fenomenologia.
Mas, o que quer dizer isto? No
nouveau régime saberemos. Aliás, no novo
regime os estudantes lerão Manoel de Barros. E tantos outros bons livros. E o
Google não mais mentirá, porque será alimentado por jovens que
refletem
e não por aqueles que apenas se
informam!
Numa palavra final. Estamos no mundo pela metáfora. E estamos nele porque
simbolizamos. O texto acima também se pretende “metáfora”. Mas não pode ser
somente uma metáfora. Como disse Wittgenstein — e cito-o, de cabeça, pela boca
de Ruben Alves —, andaimes cercam a casa, mas não são a própria casa; uma vez
construída a casa, desmontam-se os andaimes. Pois é. As metáforas talvez sejam
isso. Nietschze talvez me ajude:
tudo aquilo para que temos palavras é
porque já fomos além. E, assim, fica mais fácil entender a frase acima de
Manoel de Barros... Sim,
sempre compreendo o que faço depois que já
fiz!